domingo, fevereiro 26, 2006

A(S) SENHORA(S) SÓCRATES

Xantipa sabia muito bem por que razão Sócrates a não convidava a entrar nos seus aposentos; era porque não estava só. Era frequente receber pessoas que vinham consultá-lo sobre assuntos da Cidade que preferiam não debater em público; pagavam-lhe por isso e os seus ofícios de conselheiro engordavam o magro estipêndio que ele recebia na sua qualidade de conselheiro do primeiro estratega, Péricles. Mas acontecia os visitantes demorarem-se e passarem lá a noite, e não era difícil adivinhar que as suas conversas assumiriam um carácter mais íntimo. Esses momentos sossegavam Xantipa: ela sabia que Sócrates a não trocaria por outra mulher. Fiel à tradição ateniense, de acordo com a qual a companhia das mulheres amolece os homens, ele preferia estes últimos. Sem paixão, aliás, uma vez que se defendia dela. Xantipa compreendera desde muito cedo que o prazer e o sentimento se repelem mutuamente, e os homens, achava ela, eram tão fiéis aos seus companheiros de cama como às putas dos bordéis.
Gérald Messadié, A Senhora Sócrates, Quetzal Editores, p. 22
Este é um excerto do livro que actualmente me encontro a ler, e que permite, no século de Péricles, vislumbrar o quotidiano e as mentalidades atenienses, focando, de uma forma interessante, o homossexualismo socialmente aceite enraízado no seio de famílias influentes.
A protagonista da história é Xantipa, uma mulher que, contrariamente ao que vulgarmente sucedia na sociedade grega antiga, se manteve solteira, contra sua-vontade e para mal da sua então baixa auto-estima, até aos 24 anos de idade. Dotada de traços rudes e de fraca beleza exterior, mas de fortes convicções interiores, eis que finalmente Xantipa é pretendida pelo filósofo Sócrates, que se dirige a Hélia, mãe da solteirona, para a pedir em casamento.
Casados e instalados numa residência num bairro in da cidade de Atenas, rapidamente Xantipa dá a Sócrates dois filhos homens e, segundo Gérald Messadié, depressa Xantipa sente que o sexo não é para si, valorizando mais o afecto e o respeito conjugais. Enfim, sentia-se realizada como mãe e não se importava de prescindir dos afectos sexuais que para si foram, ao que parece, dolorosos e até chocantes, face à sua "pureza" de idade tardia, pela qual achava que os órgãos genitais masculinos eram pequenos como os que representavam os escultores clássicos.
Eis que, na sua fraca propensão para os apetites do sexo, Xantipa descobre a homossexualidade do seu marido, intervalada com as recepções de trabalho que o ocupavam até altas horas da noite nos seus aposentos privados. Sem se deixar magoar, ferir, Xantipa terá preferido esta situação que considerava devaneio sem importância, a uma situação de romance entre Sócrates e outra mulher, pois via nos casos homossexuais de seu marido simples e inocentes idas a um bordel, das quais não restava mais do que o saciar dos desejos da carne.
Não poderá esta história perfeitamente ser transportada para o presente real, em que tantas "senhora(s) sócrates", acomodadas numa vida de conforto, realizadas por serem mães, silenciadas por crenças naquilo que elas pensam ser os devaneios homossexuais sem importância dos maridos, aceitam de bom grado pactuar com a hipocrisia da sociedade, que aclama a mentira e aponta o dedo aos que, de forma corajosa, enfrentam a sociedade em prol da sua verdadeira natureza?
Há coisas que parecem teimar em não mudar...

1 comentário:

Unknown disse...

A aceitação resulta da maior valorização do nível de vida, do conforto material, do acesso aos bens de luxo, do que da auto-estima e do amor próprio. Tolera-se a infidelidade (não só homossexual), tolera-se muitas vezes a agressão física ou psicológica (que é muito mais frequente em certos estratos sociais elevados do que aparenta), a solidão. O conformismo em troca de um prato de lentilhas...